domingo, 31 de julho de 2011

Por isso mesmo, a meu ver, o abandono do termo "comunismo", que designa nosso objetivo final, seria inaceitável capitulação ...

Socialismo real – Crise mortal ou reconstrução?
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publicado no site controvésia



"O marxismo não pode ser visto como algo cristalizado para todo o sempre. Se é uma doutrina que precisa se desenvolver, ele progride por variadas tendências através de caminhos múltiplos, da competição entre as correntes, da discussão livre".

Jacob Gorender

O termo "crise" indica, segundo o dicionário, um agravamento acentuado de condições diferentes daquelas normais, um processo de mudança rápida. Trata-se, pois, de uma palavra aplicável ao que está acontecendo no mundo do chamado socialismo real. O caso da União Soviética é paradigmático, pois se trata do mais antigo dos países socialistas e o mais poderoso, o mais desenvolvido. Lá estão em crise o planejamento econômico burocrático e o modelo de partido único absoluto – uma crise econômica e política, estendendo-se para os planos cultural, moral, científico etc.

O modelo econômico, adotado desde os anos 30, terminou por desembocar na estagnação do crescimento ao final da década de 70 e começo da década 80. A economia soviética baixou seu crescimento a uma taxa de cerca de 3% anuais, segundo as estatísticas oficiais. Baixou mesmo quase a zero, conforme asseguram os cálculos de um economista tão conceituado quanto Abel Aganbeguian. Com a chegada de Gorbatchev à secretaria-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e o anúncio da perestroika, colocou-se em questão o planejamento econômico centralizado, minucioso e extremamente burocrático, que se consolidou no curso de quatro decênios. O que se pretende hoje é a manutenção do planejamento central em setores básicos – como o de transportes, comunicações, matérias-primas fundamentais, eletricidade e combustível. Portanto, um planejamento de caráter estratégico – mas acoplado à autonomia geral das empresas, dos coletivos de trabalhadores, dos agricultores e da própria iniciativa individual.

Como é que esta autonomia pode funcionar? Não existe outra saída, pelo visto, senão por meio do mercado. Haverá (e já está ocorrendo) uma ampliação das relações monetário-mercantis. Os bens de produção – até há pouco, fora do giro comercial – passam a ser vendidos no atacado, e as empresas se relacionam diretamente entre si, ao invés de fazê-lo por meio dos ministérios de Moscou. Neste mercado, os agentes fundamentais serão agentes sociais, ou seja, empresas de propriedade social, como fábricas, fazendas agrícolas e cooperativas de indivíduos, que voluntariamente se reúnem para oferecer serviços à população, ou famílias de agricultores que produzem por conta própria. A propriedade social não será afetada. Pelo menos, esta é a intenção declarada. E não se pretende admitir a contratação privada do trabalho assalariado na URSS, o que já vem ocorrendo na Hungria e na Polônia. As forças do mercado não terão plena liberdade para chegar às suas últimas conseqüências. Será um mercado socialista planejado e regulado, conforme o define o economista Leonid Albakin.

Mas ele pressupõe desigualdades, a meu ver.

Em qualquer mercado, nem todos ganham a mesma coisa – e, às vezes, alguns perdem. A desigualdade já é prevista, pois se trata do socialismo e não do comunismo. O socialismo, conforme tese de Marx, é uma etapa de transição para o comunismo. Como tal, possuirá elementos capitalistas até se extinguir. Nesse sentido, trata-se de socialismo com elementos do direito burguês, entre os quais o do pagamento segundo o trabalho. Em outras palavras: pagamento desigual por trabalhos que também são desiguais.

Marx não previu, é verdade, que o mercado se mantivesse durante tanto tempo. Na Crítica do Programa de Gotha, por exemplo, ele imaginava que, já no socialismo, o dinheiro e o mercado desapareceriam. As pessoas trocariam bônus (que receberiam pela quantidade de trabalho) por produtos, diretamente. Isso não está se confirmando: não há outra maneira, por enquanto, de fazer com que a economia funcione, mesmo em regime socialista, sem manter o mercado e o dinheiro. A questão é como controlá-los. Com o mercado, pode-se estimular a economia, a produtividade, a introdução de tecnologias novas, o oferecimento de uma variedade maior de bens de consumo (de qualidade cada vez melhor). Ao mesmo tempo, e de outro lado, o controle do Estado pode impedir que as desigualdades cheguem à escala das desigualdades capitalistas, como está acontecendo, em alguns casos, na Hungria, na Polônia e na Iugoslávia mais ainda. O descontrole das relações de mercado pôde ser observado também na China. O país obteve excelentes resultados quando saiu da camisa-de-força do planejamento uniformizador da época de Mao Tsetung: conseguiu aumentar consideravelmente a produção agrícola e industrial e avançou na modernização da economia. Simultaneamente, porém, aumentaram as desigualdades. O mercado descontrolado gerou carência de certos produtos e matérias-primas, e, em conseqüência, vieram a especulação e a corrupção. Tais deformações explicam, em parte, os recentes protestos da população chinesa, que culminaram no massacre na praça da Paz Celestial. Em última instância, pode-se dizer que está em causa hoje, em todo o mundo socialista, a tese da possibilidade do socialismo num só país. Pode-se afirmar que é uma tese ainda não refutada, nem demonstrada. A crise da passagem de um a outro modelo, as dificuldades profundas dessa passagem, muito observáveis na URSS, põem em causa se realmente é possível construir o socialismo em um só país. A prática dará a sentença definitiva.

É neste quadro que precisamos encarar a discussão econômica, que se completa com a discussão política da democracia dentro do socialismo. O que está em crise – e ainda tomando a URSS como exemplo, como caso paradigmático – é o modelo vigente há tantos anos do partido único fundido com o Estado gigante. Temos um só partido dirigente que absorve as funções do Estado – que é gigantesco porque, além das atribuições políticas e administrativas próprias de qualquer Estado, tem o comando estrito de toda a economia. Este modelo entrou em pane. É o modelo stalinista, implantado desde o final dos anos 20 e sobretudo nos 30, resultando no maior aparelho burocrático do mundo. São 18 milhões de pessoas mantidas fora da produção. Isso não só é muito caro, como asfixia a iniciativa das bases. Foi este aparelho que gerou os chamados "Projetos do Século", agora denunciados pela imprensa soviética. Projetos descomunais, como os desvios de rios, que atentam contra a ecologia, a exemplo do esvaziamento do mar de Aral ou da salinização do lago Baikal, a maior reserva de água potável no mundo. Enfim, planos que conduzem a desastres ecológicos como o que se viu em Chernobyll. Outra conseqüência inevitável é o sufocamento da vida cultural em todos os aspectos, o atraso científico e o atraso tecnológico. No campo das ciências sociais nem se fala. Estas foram reduzidas a um monótono modelo falsamente dito materialista-histórico, na verdade, um modelo do mais baixo nível teórico.

Apesar disso, é evidente que, na URSS, as práticas democráticas estão agora se firmando e ampliando. Isso é inegável. Está caindo por terra o famoso paradoxo de Norberto Bobbio, segundo o qual nenhum país democrático chegaria ao socialismo e nenhum país socialista chegaria à democracia. Assistimos à chegada de países socialistas à democracia. O Soviet Supremo, recém-eleito (ainda por métodos em parte equivalentes ao que, aqui no Brasil, chamamos de biônicos, mas, em todo caso, eleito pela primeira vez com pluralidade de candidatos e liberdade de discussão), está se convertendo no que ele deve ser: um centro do poder. Hoje, quando há questões graves que exigem solução imediata, não se espera a reunião do Bureau Político, órgão do Partido Comunista. Logo se reúne o Soviet Supremo e as discussões se travam em plenário. O Estado, pelo menos no nível das cúpulas, tanto na URSS como nas Repúblicas, está se desprendendo dos organismos partidários e funcionando como deve ser, como um Estado de direito – porque esta é também uma finalidade da democratização soviética. Reclamam-se uma nova Constituição e um novo processo eleitoral, que elimine as restrições e os privilégios antidemocráticos das últimas eleições. Sobretudo, o privilégio do partido único. Pode-se observar também a democratização em outros planos. No da imprensa, para começar. Quem lê as publicações soviéticas percebe uma diferença enorme com relação à chatice cinzenta que existia ainda há poucos anos. Hoje, os órgãos de imprensa criticam autoridades e procedimentos estatais em todos os escalões. O mesmo se pode notar na literatura, nas artes plásticas, no teatro.

Indiscutivelmente, o processo de democratização está sujeito a ventos e tempestades. As reformas econômicas, que concorrem para sustentá-lo, ainda não produziram resultados visíveis. Elas estão melhorando o desempenho da economia, é certo, mas ainda não à altura reclamada pelas necessidades da população, reprimidas há décadas. Escasseiam bens de consumo essencial e habitações, enquanto os serviços de saúde, deteriorados a ponto de aumentar consideravelmente a mortalidade infantil, ainda não se recuperaram.

A lentidão das reformas econômicas vem sendo agravada pelos conflitos nacionais e interétnicos. Vale lembrar que a URSS tem mais de cem etnias diferentes, algumas das quais sofreram verdadeiras barbaridades no tempo de Stalin: transferência maciça de centenas de milhares de pessoas de um lugar para outro, muito distante e desabitado (em geral, a Sibéria); dispersão de nacionalidades como os tártaros da Criméia, os alemães do Volga, e outras, a um custo de dezenas de milhares de mortos etc. Tudo está explodindo agora. O conflito dos armênios com os azerbeidjanos, os enfrentamentos na Geórgia e no Usbequistâo, a reivindicação de verdadeira autonomia e mesmo de independência dos países bálticos – tantos problemas requerem agora soluções políticas através da discussão, da persuasão, de acordos, e não mais, como antes, de decretos aplicados graças à força bruta.

A recente greve dos mineiros de carvão deu mostras do alcance das reformas. Trezentos mil mineiros da Sibéria, da Ucrânia e de outras regiões paralisaram o trabalho – não através dos sindicatos oficiais, que ainda são apêndices do Estado, mas organizados por comitês constituídos de baixo para cima. Um fenômeno completamente novo na história da URSS desde os anos 20. Naturalmente, a greve deflagrou uma situação preocupante, muito séria, mas foi resolvida num processo de consenso, e não à custa da força repressiva. Os mineiros, que pleiteavam melhor abastecimento, obtiveram as suas reivindicações. Conquistaram também a autogestão das suas empresas, com o direito de vender diretamente no comércio internacional o que exceder a quota de venda obrigatória ao Estado. Uma greve de dez dias, que ameaçou o abastecimento de carvão, e tudo foi resolvido da maneira mais democrática que se possa exigir. Mas a lentidão na implementação das reformas econômicas constitui grave ameaça ao êxito da perestroika.

Façamos também rápida avaliação de alguns outros países do socialismo real. O processo democrático também avançou na Polônia. O sindicato Solidariedade se tornou um partido político, venceu as últimas eleições e constituiu o novo governo. Mas por que alcançou a vitória? Porque o Partido Comunista, na Polônia, tem um passado que a grande maioria da população repudia: fracassou na administração econômica e já reprimiu várias vezes os trabalhadores, com violência homicida, como no massacre de Poznan em 1956, como em 1970 e em 1979. Acrescente-se o golpe militar de 1981, com a prisão dos militantes do Solidariedade. Esse passado repressivo – somado ao pecado original de que o socialismo na Polônia não veio de um processo revolucionário endógeno, porém foi imposto pelas tropas soviéticas de ocupação em conformidade com o modelo stalinista – fomenta poderosas tendências anti-socialistas na Polônia. Não se pode desligar disso a influência imensa do catolicismo. Sabe-se que o catolicismo não é homogêneo, haja vista a própria experiência do Brasil e de outros países da América Latina. Mas o catolicismo polonês tem um componente reacionário fortíssimo. A influência do papa João Paulo II sobre o líder Lech Walesa é conhecida. Enfim, tendências pró-capitalismo atuam livremente na Polônia. Como este processo não está resolvido, a reversão ao capitalismo não deixa de ser uma das possibilidades. Embora o Solidariedade tenha também correntes pró-socialismo, como a representada pelos deputados Jacek Kuron e Adam Michnik. Particularmente, espero que a classe operária polonesa não se deixe desorientar e conquiste a democracia sem abrir mão do socialismo. Ela pode fazê-lo através do Solidariedade e de outras organizações. Pode construir o socialismo, não segundo o falido modelo stalinista, mas segundo o modelo adequado às características da Polônia.

Fatos semelhantes, embora não tão graves, ocorrem na Hungria. Também ali o Partido Comunista se comprometeu com a repressão brutal das tropas soviéticas, em 1956. E não tem conseguido se desvincular dessa imagem repressora, apesar de haver iniciado um processo pioneiro de reformas, há vinte anos. Não há dúvida, porém, de que o compromisso com a repressão no passado macula a imagem do Partido Comunista na Hungria. A resposta virá dos trabalhadores, nas eleições do próximo ano, já no regime pluripartidário.

Creio que, nos demais países, o processo de renovação democrática não avançou significativamente. Pouca coisa há para ser dita da Tchecoslováquia e muito menos da Alemanha Oriental. Infelizmente, as notícias que nos chegam de Cuba não são alentadoras. A última delas, a proibição da circulação de publicações soviéticas que defendem a perestroika, é lamentável. Não podemos aplaudir uma medida dessa natureza. Com toda a admiração pela Revolução Socialista cubana, pela sua solidariedade internacional a Angola e a outros países da África, não podemos deixar de criticar o modelo político que ainda se mantém em Cuba e que já está entrando em obsolescência. Precisa ser mudado. O fato de Cuba ter fronteiras praticamente apenas com os Estados Unidos não justifica esse monolitismo unipartidário, essa vida cultural espartilhada.

O marxismo não pode ser uma doutrina imposta nas escolas dos países socialistas como catecismo religioso. Os estudantes e todas as pessoas interessadas têm o direito de conhecer as outras doutrinas sociais, políticas e econômicas. O marxismo precisa competir com as outras doutrinas. Não deve haver nenhum obstáculo à importação de livros, venham de onde vierem. Todo o passado da cultura humana deve estar ao alcance do público. Com o pressuposto da liberdade de não ser marxista.

Nessa perspectiva de atraso, o que se passou este ano na China configura o caso mais penoso. A China começou a fazer sua nova política econômica, a sua NEP (como é conhecida a sigla soviética), há dez anos, com um retardamento de vinte anos devido à Revolução Cultural e ao maoísmo. Só então ela acabou com aquela coletivização bastante fictícia, meramente aparente, que havia no campo, e voltou a introduzir relações mercantis abertas na agricultura e em outros setores. Isso deu grande impulso ao desenvolvimento da economia. Mas as relações mercantis têm a sua própria dinâmica e tudo indica que a direção política e econômica do país perdeu o controle do processo. O descontrole, as desigualdades acentuadas, carências, câmbio negro, especulações e corrupção contra tudo isto se voltou o vigoroso movimento de massas de abril a junho últimos.

Ao contrário da URSS, onde o stalinismo castrou, durante decênios, as iniciativas de baixo para cima, a China, apesar da violência do maoísmo, mantém viva uma fabulosa tradição de movimentos de massa. Os estudantes, setor mais sensível às questões culturais e políticas, tomaram a vanguarda nas jornadas da praça da Paz Celestial em Pequim, e logo tiveram o apoio de trabalhadores. Por que um desenlace trágico veio selar este movimento, reprimido a sangue frio? Porque o Partido Comunista da China continua preso ao modelo monopartidário, desgastado em todo o mundo socialista. Tão desgastado que, mesmo sendo um partido com 40 milhões de militantes, o PC chinês não foi capaz de mobilizar uma única contra manifestação aos estudantes e trabalhadores reunidos na praça da Paz Celestial. Não se sabe, até hoje, de uma só passeata ou comício que se dirigisse contra os estudantes. Isso mostra a falência política do partido. Sem a possibilidade de um diálogo, de uma resposta política, o governo atacou seu próprio povo da maneira mais cruel e exibicionista, difundida pela televisão para todo o mundo. Não podemos deixar de protestar com veemência contra este crime stalinista.

O modelo do partido único caminha para uma situação de crise e terá de ser superado seja em Cuba, seja na China. O que acontece na URSS já nos permite fazer esta previsão. O movimento democrático de base existente na China, essa aspiração, que mobilizou um milhão de pessoas na praça da Paz Celestial e centenas de milhares em outras cidades, não vai ser asfixiada pelo massacre, pelas punições, nem pelas execuções capitais.

A concepção marxista do socialismo não parte de princípios éticos, como ocorria com o socialismo utópico. Mas inadmissível também é o socialismo sem ética, bem como a própria luta pelo socialismo sem um código moral. Isto é, stalinismo, caracterizado justamente pelo "vale-tudo" decidido "en petit comité", que delibera eliminar companheiros, fuzilá-los, jogá-los nos campos de concentração. A experiência prática está demonstrando que este socialismo sem ética, sem Estado de direito, sem democracia, conduz aos impasses hoje enfrentados pela perestroika na URSS. Conduz a perdas graves no movimento socialista. O marxismo não encerra, como alguns têm dito, uma vertente autoritária. O marxismo coloca com clareza que o momento da revolução é o momento da autoridade, porque só a força derrota o adversário. Mas esta é uma força de classes sociais, não de seitas. Que fique bem claro: não somos nós que escolhemos o caminho da revolução violenta. Esta nos é imposta pelo adversário, que obstrui o caminho pacífico com o uso prévio da violência do aparelho de Estado por meio da repressão política, dos golpes militares etc.

Diante disso, não podemos abrir mão de usar também da violência, o que, todavia, não significa "vale-tudo". Se empregarmos o "vale-tudo", mesmo contra o inimigo – adotando, por exemplo, a tortura como procedimento legítimo -, vamos nos desmoralizar, vamos descer ao nível abjeto do inimigo. Ficaremos eticamente desqualificados para construir uma sociedade socialista democrática.

Eu, pessoalmente, vejo a democracia como valor do socialismo. Discordo da fórmula do PCI (Partido Comunista Italiano), teorizada e difundida, aqui no Brasil, por Carlos Nelson Coutinho e Francisco Weffort, sobre a democracia como valor universal. Falar em democracia como valor universal é colocar no mesmo plano a democracia burguesa e a democracia socialista, que agora começa a ser construída em alguns países. A fórmula do PCI é vazia, pode ser preenchida e igualmente legitimada por um conteúdo burguês ou por um conteúdo socialista. Entre os dois se estabelece equivalência. Defendo a democracia como valor do socialismo e, por conseguinte, compatível com o socialismo.

O marxismo não pode ser visto como algo cristalizado para todo o sempre. Se é uma doutrina que precisa se desenvolver, ele progride por variadas tendências através de caminhos múltiplos, da competição entre as correntes, da discussão livre. Declaram o marxismo ultrapassado, mas, do ponto de vista da esquerda, que poderia tomar o seu lugar? Vale a pena conferir as alternativas oferecidas. A social-democracia? Até hoje as experiências da social-democracia atestam que ela é componente estabilizador do capitalismo. Obtém reformas para os operários – daí seu prestígio nos países desenvolvidos, onde é possível obter tais reformas -, mas este processo de conquista de reformas não é ininterrupto, nem consolidado. Discordo do pensador italiano Norberto Bobbio, segundo o qual nunca houve revolução permanente, mas há reforma permanente. Ora, este processo de reformas cessou e recuou, golpeado pelo desemprego e pela ofensiva dos governos conservadores dos EUA e da Europa. Há dez ou quinze anos, o processo de reformas sociais ficou bloqueado exatamente nos países desenvolvidos. Não, não vamos trocar o marxismo pela doutrina social-democrata ou keynesiana. E então? Trocar o marxismo pelo autonomismo? Esse neo-anarquismo de salão, que não tem sequer a combatividade do velho anarquismo? Francamente, é ridículo. O autonomismo também já cessou de se desenvolver, está em declínio vertiginoso. Nem falar de trocar o marxismo pelo pós-modernismo! Isto seria uma capitulação completa e vergonhosa à ideologia burguesa difundida por meio da mídia e das cátedras universitárias. Eu penso que o marxismo já superou outras crises gravíssimas e pode superar a atual, por meio da abordagem criativa das novas realidades. A história não vai parar no capitalismo. Dizem também que o termo "comunismo" está tão envilecido que seria bom abandoná-lo. Ora, o comunismo é um conceito teórico que designa um objetivo determinado. Se não mudamos o objetivo, porque mudaremos sua denominação? É certo que a utilização (e o abandono) de certos termos, segundo razões de ordem tática, constitui procedimento conhecido na esquerda. Os partidos da II Internacional adotaram a denominação da social-democracia imitando o partido alemão, que passou a se chamar social-democrata a partir de 1891 para driblar a legislação anti-socialista. Em 1919, Lenin considerou que a atitude dos partidos social-democratas durante a Primeira Guerra Mundial significava uma traição do objetivo comunista, que implica solidariedade internacional. Os partidos social-democratas apoiaram os governos burgueses da Alemanha, da Áustria, da França, da Inglaterra, da Rússia, potências que lutavam entre si, e passaram a engrossar as hostes dos exércitos imperialistas, em vez de lutar pela revolução. Todos eles abandonaram na prática o objetivo do comunismo. Lenin dizia, em razão desse fato, que os partidos comprometidos com o socialismo e o comunismo não podiam continuar a se chamar social-democratas. Mas nem todos, a partir de então, se chamaram comunistas, obrigatoriamente. Quero dizer que não interessa a denominação do partido, e sim o objetivo que ele tem. O comunismo é o nosso objetivo. E ele não pode ter morrido – mesmo porque concretamente não chegou sequer a existir. Isso não impõe, é claro, que, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores se chame Partido Comunista, o que daria numa confusão enorme. Já existem por aqui quatro ou cinco siglas de partidos comunistas. Para que criar mais uma?

O caminho para o comunismo está longe de ser suave. A etapa do socialismo é muito acidentada, bem mais do que Marx, Engels, Lenin e outros teóricos previam. Nem Trotsky, nem Rosa Luxemburg imaginaram o quanto esse caminho seria turbulento. Há questões cruciais não resolvidas. Por exemplo, o fato de que nenhum país capitalista avançado, até hoje, realizou a revolução socialista. Temos de compreender que se trata de um fato importantíssimo. O melhor instrumento para a compreensão teórica dessa realidade continua a ser o marxismo. Por isso mesmo, a meu ver, o abandono do termo "comunismo", que designa nosso objetivo final, seria inaceitável capitulação diante da pressão ideológica da mídia burguesa.

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Jacob Gorender, historiador e jornalista, autor de O escravismo colonial e Combate nas trevas.

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