sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O problema de Deus em Jean-Paul Sartre

27 de Janeiro de 2007 ⋅ Filosofia da religião

Rogério A. Bettoni
O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) não escreveu apenas obras filosóficas, mas também ensaios, romances e peças de teatro. Em sua obra de caráter existencial, Sartre não deu uma importância excessiva ao problema religioso, pois não estava preocupado em discutir acerca da existência ou não existência de Deus. Antes disso, sua filosofia consiste em colocar o homem como responsável por todos os seus atos. Lançado num mundo sem justificativa, o indivíduo projeta-se no futuro, escolhe um sentido para sua vida, já que ela não possui um sentido a priori. Desta forma, o existencialismo de Sartre está inteiramente estruturado no fato de que a existência humana precede sua essência, e esta é construída através da liberdade responsável que o homem manifesta ao escolher sua própria vida. Nada, nem mesmo Deus, pode justificar o homem ou retirá-lo de sua liberdade total e absoluta, ou ainda salvá-lo de si mesmo. No presente texto, buscamos fazer uma análise de sua obra filosófica e literária à procura dos fatores que explicam e fundamentam o ateísmo sartreano.
O existencialismo de Sartre e a condição do homem no mundo
Em 1946, alguns anos após a publicação de sua obra mais importante e de caráter puramente filosófico, O ser e o nada, Sartre profere uma conferência intitulada O existencialismo é um humanismo, na qual pretende defender seu pensamento de uma série de críticas e explicitar com mais clareza suas idéias. Nesta conferência, ao colocar o homem como pura subjetividade, Sartre demonstra que sua filosofia tira todos os subsídios de uma postura absolutamente atéia, o que consiste em considerar que a existência humana precede sua essência. Para tal, Sartre cita o exemplo de um objeto fabricado, mais precisamente um corta-papel.
Ao concebermos um corta-papel, devemos admitir que esse objeto foi fabricado por um artífice, que já possuía uma idéia prévia, um conceito do que seria este objeto, pois é impossível imaginar a fabricação de algo sem saber exatamente para que irá servir. No caso do objeto, a sua produção precede sua existência, isto é, antes de o objeto ser fabricado, já possuíamos um conceito dele. Deste modo, quem crê em Deus, considera-o como um Artífice superior, no qual estaria implícito a noção do homem. De forma análoga, há alguns ateus que, como os do século XVIII, mesmo negando a existência de um Criador, admitem que o homem possui uma natureza humana, um conceito humano, que colocaria todos os homens numa mesma definição, pois são possuidores das mesmas características básicas. A essência, neste caso, continua a preceder a existência, e este é um princípio que podemos observar em quase toda a história da filosofia.
Sartre afirma o contrário. Dizer que a existência precede a essência não é simplesmente suprimir Deus e negar a natureza humana em função da realidade humana. Dizer que a existência precede a essência é colocar o homem como um nada lançado no mundo, desprovido de uma definição. O homem surge no mundo e, "de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo" (Sartre, O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 6.). Ora, isso implica também o fato de que o homem só se faz num constante projeto, num incessante lançar-se no futuro. Somente assim o homem irá se definir como ser existente e consciente de si mesmo.
O existencialismo impõe ao homem a inteira responsabilidade no exercício de suas ações. Ao escolher sua vida, o homem também escolhe todos os homens. O valor de sua escolha é determinado pelo fato de que ele não pode escolher o mal. Nas palavras de Sartre: "o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos" (idem, p. 7). A imagem que moldamos de nós deve servir, em última instância, para todos os homens. Nesse sentido, o homem não é só responsável por si, mas também pela humanidade inteira.
O existencialismo ateu de Sartre busca manter sua coerência atribuindo ao homem o compromisso de construir a sua própria essência. Lançado no mundo sem perspectivas, o homem determina sua vida ao longo do tempo, e descobre-se como liberdade, ou seja, como escolha de seu próprio ser no mundo. Ao falar da condição do homem, Sartre relaciona-o com a angústia, o desamparo e o desespero. Mas o que significa definir o homem nestes termos?
A angústia consiste simplesmente na descoberta de que o homem, quando escolhe, não é apenas o legislador de si mesmo, mas alguém que, ao mesmo tempo, escolhe a si mesmo e a humanidade inteira. O homem que descobre isso não consegue escapar de sua total e absoluta responsabilidade, que gera o sentimento original de angústia. Por isso é o próprio homem quem determina o valor de sua escolha, pois ele tem o constante dever de se perguntar: "o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós?" (ibidem, p. 7) Assim, a ação do homem, vista como a escolha constante de seu destino, é propriamente constituída por angústia.
Ao falar de desamparo, Sartre quer simplesmente dizer que "Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências" (idem, p. 8). Desamparo significa que o homem não possui nada a que possa se segurar, nem dentro nem fora dele; não existem bases para direcionar suas ações, a não ser sua liberdade e responsabilidade. Não existem valores eternos preestabelecidos que impedem o homem de agir, nenhuma justificativa ou desculpa que o retire de sua escolha. Em qualquer situação, somos nós que escolhemos, subjetivamente, aquilo que provém de nossa própria vontade. O homem está só: "o desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos" (ibidem, p. 12). Não obstante, o desespero está ligado ao fato de que o existencialista não espera nada de um mundo transcendente. Se o desamparo é ausência de Deus, o desespero é não esperar por ele. As circunstâncias, deste modo, não podem servir como evasivas para nossos atos, nem como subterfúgios para nossos fracassos. Des-espero: o que torna nossa ação possível é apenas a nossa própria vontade. Por isso Sartre escreve: "o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida" (idem, p. 13). Projeto, liberdade, responsabilidade, e existência que escolhe sua essência são termos constantes na obra de Sartre, e que também se interagem e são correlatos. Assim, podemos dizer que é inerente à condição do homem sua situação autêntica de angústia, desamparo, desespero.
A gênese do ateísmo: a literatura e a influência familiar
Sartre abandonou a crença quando possuía apenas 11 ou 12 anos. Numa entrevista concedida à Simone de Beauvoir (A Cerimônia do Adeus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981), reconhece que o pensamento da não existência de Deus surgiu naturalmente, de repente:
...e sob a forma de uma pequena intuição, lembro-me muito bem que disse a mim mesmo: Deus não existe. É notável pensar que pensei isso aos onze anos, e nunca mais tornei a fazer-me a pergunta até hoje, isto é, durante sessenta anos (...). Não recordo haver-me jamais lamentado ou surpreendido pelo fato de Deus não existir. (Idem, p. 589-590.)
Sartre considera essa intuição como algo concreto, uma verdade evidente e sem pensamentos prévios. Com sua família de cunho católico (a avó) e protestante (o avô), mas uma religiosidade aparente, Sartre freqüentava a igreja, mas nada disso era realmente convicção. Por si só, e aos poucos, a simpatia por Deus perdeu seu efeito: "eu tinha necessidade de Deus, ele me foi dado, eu o recebi sem compreender o que procurava. Por não deitar raiz em meu coração, vegetou em mim algum tempo, depois morreu" (As Palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 75). Ao invés de adorar a Deus, Sartre adorava as palavras.
Sartre cresceu no meio dos livros. Aprendeu a ler na biblioteca particular de seu avô, onde encontrou na literatura um refúgio à religião. Numa poética passagem de As palavras, Sartre descreve sua relação primeira com os livros:
Nunca esgravatei a terra nem farejei ninhos, não herborizei nem joguei pedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; (...) Eu achara minha religião: nada me pareceu mais importante do que um livro. Na biblioteca, eu via um templo. (Idem, p. 37-44.)
Este contato com os livros e o amor pelas palavras fez de Sartre o escritor que conhecemos hoje. É o que podemos observar em sua autobiografia As palavras, onde ele descreve não só a experiência de seu ateísmo, como também a influência de sua família que, para ele, representava apenas um caráter superficial ou ainda artificial da fé. Em seu ambiente familiar, Sartre descobriu um cristianismo que não se baseava na fé, mas na questão social. Os fiéis alimentavam tradições que não tomavam a cargo, nem refutavam: eram cristãos que nunca haviam se tornado cristãos. O ateu era alguém que também possuía convicções religiosas, um indivíduo que
se obrigava a provar a verdade de sua doutrina pela pureza de seus costumes (...), um maníaco de Deus que via em toda parte. (sic) Sua ausência e que não conseguia abrir a boca sem pronunciar Seu nome. (Ibidem, p. 72.)
Desta forma, Sartre reconheceu na família uma religião pouco convicta, confundida com os valores espirituais e morais, e ainda, com a pureza da arte encontrada nas igrejas: "Não sabiam, imagino, se era a música que as influenciava, por ser religiosa, ou se era a religião, por ser harmoniosa" (Diário de uma Guerra Estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 94). Os seguidores, sob este aspecto, eram pessoas mascaradas, ocultas na face de um cristianismo sociológico, expresso na indiferença e na contradição familiar: "julgava-se então muito mais difícil ganhar a fé do que perdê-la" (As Palavras, p. 73). No entanto, apesar de Sartre discordar do cristianismo, este não encerra o homem na coagulação abstrata onde Deus seria aquele que impede a ação do homem. Para os cristãos, a causa da liberdade humana está em Deus, que o lança no mundo através do amor, e este representa a relação primeira dos homens entre si e da busca de seu futuro.
A contingência e a gratuidade da existência
Segundo Sartre, fé e necessidade são termos análogos. O homem, nascido sem razão e sem propósito, descobre-se como angústia e sente necessidade de encontrar um sentido para sua vida, necessidade esta que se reflete na crença. Ter fé em Deus significa alienar-se diante da própria liberdade, imputar a algo Transcendente um motivo para agir, esquecer-se que a vida humana nada mais é do que contingência e gratuidade. Em A náusea, Sartre situa o homem como uma "paixão inútil", demais em relação ao mundo. A náusea existencial é o próprio homem, o que ele sente em relação à gratuidade da existência, à possibilidade existencial, absurda em última instância, pois desprovida de significado. A totalidade do mundo, nua perante os olhos do homem, torna-se absurda por seu caráter contingente. Nesse sentido, Sartre afirma que
o essencial é a contingência. (...) a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. (...) há pessoas que já compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. (A Náusea.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 193-194. Rita Braga, tradutora de A Náusea, pode não ter tido um contato real com a obra filosófica de Sartre: o termo francês être la na verdade significa estar aí, e não estar presente, como consta nesta tradução.)
Para Sartre, o absurdo do mundo é absoluto por sua constante possibilidade, isto é, tudo é gratuito: a vida humana não tem sentido algum, e para superar este caráter contingente da existência, o homem inventa Deus. Cabe exclusivamente ao homem dar um sentido à sua vida.
A contingência faz do homem um ser solitário, que conta somente com sua subjetividade para agir. É pura ilusão acreditar que a vida humana possui um sentido dado por Deus. A única coisa que a vida oferece ao homem é sua própria liberdade, pois já que a vida não possui um significado preestabelecido, só podemos contar com nossa solidão, nossa absoluta individualidade. "A ausência de Deus era visível em todos os lugares. As coisas estavam sós, sobretudo o homem estava só. Estava só como um absoluto" (Beauvoir, op. cit., p. 591). Se Deus não existe, somente o homem pode decidir, sozinho, o melhor caminho para suas escolhas que determinarão sua vida e sua essência.
O olhar de Deus
Uma outra característica importante e decisiva na obra de Sartre é a questão do olhar de Deus. Se o homem está só, como explicar esse olhar direcionado aos homens? Em Sursis, romance que compõe a segunda parte da trilogia Os caminhos da liberdade, Sartre descreve a experiência de Daniel, um homossexual que se sente atravessado por esse olhar:
um olhar que o perscrutava até o fundo, que o penetrava a golpes de punhal e que não era no seu olhar; um olhar opaco, a própria noite, que o esperava no fundo dele mesmo e o condenava a ser ele mesmo, covarde, hipócrita, pederasta para sempre (...). O olhar (...). Estou sendo visto, transparente, transpassado. (Sursis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 124-125)
Na presença do olhar de Deus, Daniel sentia ao mesmo tempo repulsa e tranqüilidade, pois havia encontrado, no olhar, uma justificação, um lugar que o livrava de sua culpa. Em outra passagem, Daniel afirma: "Dizer-te o que é esse olhar ser-me-ia fácil: porque não é nada: é uma ausência" (idem, p. 366).
Laurent Gagnebin irá situar o olhar de Deus, na obra de Sartre, como um importuno, que possui uma função que "revient à nous transformer en chose inerte et sans défense devant un jugement qui nous transperce sans respect" ("La Foi" in Connaître Sartre. Paris: Resma, 1972, p. 100; tradução livre: "volta a nos transformar em coisa inerte e sem defesa diante de uma sentença que nos atravessa sem respeito"). Em As palavras, Sartre fala de sua própria existência quanto a este olhar:
Uma só vez experimentei a sensação de que Ele existia. Eu brincara com fósforos e queimara um pequeno tapete; estava dissimulando meu crime, quando de súbito Deus me viu; senti seu olhar dentro de minha cabeça e sobre minhas mãos; eu rodopiava pelo banheiro, horrivelmente visível, um alvo vivo. (As Palavras, p. 75)
Para Sartre, o olhar de Deus é imaginário, que ele mesmo confessa ter sentido na infância (Beauvoir, op. cit., p. 589). A presença deste olhar está no fato de que, ao agir, o ser humano projeta no olhar do homem uma espécie de "valor transumano" (idem, p. 597.), e este olhar representaria a aprovação dos homens perante nossos atos. Ao situar sua própria obra neste plano, Sartre escreve: "de maneira que há como que um olhar sobre a obra, e que é, no fundo, o olhar dos homens, um pouco multiplicado, um pouco modificado (...). Ou seja, algo como Deus" (ibidem, p. 598).
A negação de Deus e a impossibilidade de sua existência
O existencialismo ateu de Sartre também encontra seu fundamento e sua consistência no fato de que o homem só é realmente livre quando ele contesta Deus e recusa a alienação religiosa. Em As moscas, podemos observar como o pensamento sartreano atribui à religião e à superstição um caráter anulatório da prática da liberdade dos homens. Gagnebin situa esta obra como a expressão original do receio e da escravização humana, pois "le peuple sur lequel règne ce Dieu est un peuple servile et terrorisé, obsédé par ses fautes et annihilé par ses remords toujours égocentriques" (Gagnebin, op. cit., p. 104; tradução livre: "o povo sobre o reinado de Deus é um povo servil e aterrorizado, obsidiado por suas faltas e anulado por seus remorsos sempre egocêntricos"). É preciso ser mais que isso: se o homem é livre, ele só pode escapar e se distanciar de Deus. Orestes, personagem de As moscas, representa o caminho que deve conduzir o homem à negação de Deus, isto é, Júpiter. Com efeito, Orestes afirma: "não sou senhor, nem escravo, Júpiter. Sou a minha liberdade. Mal tu me criaste, deixei de te pertencer" (As Moscas. Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 165). A liberdade humana faz da idéia de Deus uma possibilidade contraditória, pois nega de modo prático sua presença (Gagnebin, op. cit., p. 105), tomando como encargo a recusa referencial à transcendência. A vida do homem "começa para além do desespero" (Sartre, op. cit, p. 165), e este pode ser evitado aceitando sem restrições a angústia da própria gratuidade existencial. O crente, neste caso, está condenado ao desespero, pois só encontra o fundamento de sua existência em sua relação com o Eterno. Contudo, a fé em Deus não prejudica o homem, pois corresponde à possível construção de sua vida enquanto parte da humanidade.
A idéia de que o homem só se realiza enquanto negação da divindade será retomada em O Diabo e o Bom Deus, obra onde a existência de Deus e a do homem livre são, na realidade, desprovidas de qualquer relação concreta, isto é, para que o homem viva, é necessário que Deus desapareça. O homem é o indivíduo que deve escolher a si mesmo e, consequentemente, amar a humanidade em oposição ao amor a Deus. Antes de ser um ataque radical à religião, O Diabo e o Bom Deus reflete o aspecto da moral existencialista, que suprime os valores preestabelecidos num céu inteligível e situa o Bem e o Mal como relativos. Para Sartre, o Bem "é o que se presta à liberdade humana", enquanto o Mal "o que prejudica a liberdade humana" (Beauvoir, op. cit., p. 596). Neste contexto, Deus seria então um mal para os homens?
Em torno da noção de Deus, Sartre irá justificar a impossibilidade de sua existência em sua obra O ser e o nada. O homem, possuidor de uma consciência, definido como "para-si" ou consciência de si próprio e captador das coisas exteriores, busca a consistência do ser "em-si", fechado em si mesmo, sem consciência de sua existência. Deus seria algo como "a impossível síntese do para-si e do em-si" (O Ser e o Nada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 140). Ora, a consciência existe somente na medida de consciência e captação do "em-si". Por isso, o conceito de Deus é contraditório, pois é impossível existir, num mesmo ser, a plenitude como causa de si mesmo e a consciência de si como fundamento necessário de si mesmo, isto é,
um ser que seria seu próprio fundamento, não enquanto nada, mas enquanto ser, e manteria em si a translucidez necessária da consciência, ao mesmo tempo que a coincidência consigo mesmo do ser-em-si. (Idem, p. 140)
Analogamente, o ser humano acaba por tornar-se fracassado em seu projeto, pois o que ele busca é exatamente ser esta síntese: possuir a consciência de si mesmo e a fixidez do em-si. A consciência, como nadificadora da realidade, não suporta o seu próprio vazio, procurando assim realizar-se em termos de absoluto (Bornheim, Sartre. São Paulo: Perspectiva, p. 307). "Ser homem é propender a ser Deus; ou, se preferirmos, o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus" (Sartre, op. cit., p. 693).
O homem, na sua relação com o mundo, só se apreende e se realiza na sua relação com o outro, pois o outro é o único que pode apreendê-lo como objeto. O homem tem consciência de sua existência através do olhar do outro, e vice-versa. Ao conceber a humanidade como um todo, só podemos imaginar Deus como o "Outro", pois este seria o único possível em presença atuante em toda a humanidade. Mas se Deus é ausência radical, o projeto da humanidade em se fixar como objeto resulta num fracasso incessante. Nesse sentido, Sartre afirma que "o conceito-limite da humanidade e o conceito-limite de Deus implicam-se mutuamente e são correlatos" (idem, p. 524).
Conclusão
O percurso que fizemos até aqui permitiu-nos observar que a afirmação de Sartre acerca da condição humana perpassa toda a sua obra, e se resume no fato de o homem ser um Deus fracassado, pois projeta-se na realização de uma síntese impossível. Desta forma, a recusa de Deus, ainda que pouco evidente, está presente em todo seu pensamento.
É importante novamente ressaltar que o homem só descobre o peso de sua liberdade quando, de fato, elimina Deus de seus horizontes. Apesar de o homem, psicologicamente, representar o desejo de realizar-se enquanto Deus, ou seja, consciência e plenitude, acreditar na existência de Deus não deixa de ser um exercício de liberdade, de escolha da própria ação do homem.
Partindo do pressuposto de que o homem contemporâneo vive mais em função da ciência e da técnica do que propriamente da religião, Sartre também vê no significado da crença em Deus um certo anacronismo, a sobrevivência de uma noção já ultrapassada:
Penso que houve um tempo em que era normal crer em Deus, no século XVII, por exemplo. Atualmente, considerando a maneira pela qual vivemos, o modo pelo qual tomamos consciência e pelo qual percebemos que Deus nos escapa, não há intuição do divino. Penso que neste momento a noção de Deus é uma noção anacrônica já, e sempre senti algo de caduco, de ultrapassado nas pessoas que me falaram de Deus acreditando nisso. (Beauvoir, op. cit., p. 601)
Ao afirmar em As Palavras que "o ateísmo é uma empresa cruel e de longo fôlego" (p. 181), Sartre se reporta à questão de ter abandonado o ateísmo idealista em função do ateísmo materialista. E esta passagem, ao contrário do que se pode pensar, é um exercício difícil, pois o ateísmo idealista é simplesmente a negação de uma idéia, a recusa da idéia de Deus em substituição à um nada espiritual, enquanto o ateísmo materialista é uma nova concepção de um ser, isto é, a visão do universo sem Deus (Beauvoir, op. cit., pp. 591, 594, 595, 598). E já que acreditar em Deus representa uma escolha, seria conveniente escolhê-lo para imputar a Ele a obra da síntese do mundo, onde todas as ações e sofrimentos humanos seriam "uma provação tolerada ou desejada pelo Ser supremo" (idem, p. 602). De maneira semelhante, Sartre vê no fato de ser ateu um certo enriquecimento moral e psicológico para o homem, mas isso é algo que está a caminho e ainda vai levar tempo para se concretizar. Antes, é preciso esquecer o princípio do Bem e do Mal, que é Deus, e "reconstruir um mundo liberado de todas as noções divinas que se apresentam como uma dimensão do em-si" (ibidem, p. 604), pois mesmo aqueles que não crêem em Deus possuem ainda certos valores, noções "divinas" que são difíceis de eliminar e fazem com que o ateísmo não alcance seu real objetivo. Sartre encontrou na descrença a afirmação de sua própria liberdade, que fez com que ele mesmo determinasse suas ações e tivesse uma relação direta com os homens, sem a necessidade de passar pelo infinito. Não crer em Deus é a primeira das desalienações do homem, pois este, ao se desalienar, torna-se medida e futuro da humanidade. O homem só desenvolve uma verdadeira relação consigo mesmo quando elimina Deus de sua vida, pois passa a ter uma relação direta com o mundo, e não efetivamente com algo de Transcendente.
O ateísmo de Sartre lembra a filosofia de Feuerbach, o qual afirma que não é Deus que cria o homem, mas o homem quem cria Deus (Feuerbach (1804-1872), com a polêmica de sua filosofia, buscou em toda sua trajetória demonstrar que a religião era simplesmente um fato humano, criação do homem a partir da consciência que ele tinha de si mesmo. Sua obra mais importante, A Essência do Cristianismo, reflete seu desejo em transformar a teologia e a religião em uma verdadeira antropologia). A fé religiosa representa assim as próprias qualidades e aspirações do homem que, ao se sentir fracassado, aliena-se e constrói uma divindade superior. No esforço de Feuerbach, Sartre pretende desenvolver um pensamento puramente humano, que explique o próprio ser do homem em sua relação concreta com a humanidade.
Sartre não quer matar Deus, pois a morte, em extensão, deixa resquícios da presença de quem morreu na consciência das pessoas. O que Sartre pretende com seu ateísmo é suprimir Deus simplesmente, retirar do mundo todos os obstáculos transcendentes que impedem o exercício do homem em ser livre, fundamentar na vida humana uma real antropologia, onde a Transcendência e a teologia se transformariam em descoberta do humano. Suprimir Deus é situar o homem como pura subjetividade, liberdade, responsabilidade.
Visto isso, pode-se afirmar que o existencialismo não quer mergulhar o homem no desespero, pois o desespero é superado quando aceita-se a angústia de viver a liberdade e a gratuidade da vida. O problema existencial não é tão ligado, nesse sentido, na questão da existência de Deus. O que Sartre quer dizer é que, mesmo que Deus realmente exista, nada vai mudar na vida do homem, pois nada pode salvá-lo de si mesmo. "Nesse sentido, o existencialismo é um otimismo, uma doutrina da ação, e só por má fé é que os cristãos, confundindo o seu desespero com o nosso, podem chamar-nos de desesperados" (O Existencialismo é um Humanismo, p. 22).
Rogério A. Bettoni
rogeriobettoni@yahoo.com.br
Bibliografia
• Abbagnano, Nicola. A Sabedoria da Filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
• Beauvoir, Simone de. A Cerimônia do Adeus. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
• Bornheim, Gerd A. Sartre: Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 1984.
• Gagnebin, Laurent. "La Foi", in Connaître Sartre. Paris: Resma, 1972.
• Jeanson, Francis. Sartre. Trad.: Elisa Sales. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
• Nogare, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
• Sartre, Jean-Paul. A Náusea. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
• ——. As Moscas. Trad. Nuno Valadares. Lisboa: Editorial Presença, 1986.
• ——. As Palavras. Trad. J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
• ——. Diário de uma Guerra Estranha: Novembro de 1939, Março de 1940. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
• ——. O Diabo e o Bom Deus. Trad. Maria Jacintha. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965.
• ——. O Existencialismo é um Humanismo. Trad.: Rita Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).
• ——. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
• ——. Sursis: Os Caminhos da Liberdade, 2. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

27 de Janeiro de 2007 ⋅ Filosofia da religião

Revista de Filosofia

Nenhum comentário: