quinta-feira, 7 de julho de 2011

A filósofa Gilda de Mello e Souza escreve sobre Roger Bastide e a arte barroca brasileira


De Bastide a Aleijadinho Cultura


Publicado no site Controvérsia.texto 9315

A filósofa Gilda de Mello e Souza escreve sobre Roger Bastide e a arte barroca brasileira

Gilda de Mello e Souza


(…) Para quem, como eu, teve o privilégio de conhecer um grande professor como Roger Bastide, vou fazer, rapidamente, uma menção a ele, como ele era fisicamente e como era o seu método de trabalhar.

Quando o professor Bastide chegou ao Brasil, em 1938, nossa Faculdade era muito jovem e eu acabava de passar para o segundo ano de filosofia. Ele tinha perto de 38 anos, fisionomia inesperadamente asiática, pronúncia bem meridional. Era, enfim, um francês atípico, sem sotaque parisiense. Um francês bem diverso do modelo que o cinema americano divulgou.

Na extrema mocidade tinha atravessado um período místico, feito estágio na boemia surrealista, apresentado sempre um acentuado pendor pela arte e pelas culturas primitivas. Esses fatores devem ter facilitado a sua aclimatação rápida no país e, hoje, com os recursos da nova historiografia, eu diria que ele soube avaliar muito bem a realidade que tinha pela frente, sobretudo porque em vez de apoiar-se no conhecimento científico preferia servir-se do conhecimento conjetural, isto é, por aquele conhecimento que Carlo Ginzburg vai definir tão bem. Conhecimento fixado no Oriente, nas narrativas orientais em que a verdade é sempre desvendada por meio de uma série coerente de sinais imperceptíveis e de provas mudas que nós temos de ajudar a decifrar.

Deveríamos a esse raciocínio etapas muito importantes da civilização, como, por exemplo, o nascimento do diagnóstico médico, infelizmente abandonado nos dia de hoje, o romance de Conan Doyle e, coisa inesperada, a descoberta da peritagem, na pintura, feita por Morelli.

O que era admirável no professor Bastide era a utilização que ele fazia desses métodos artesanais de informação, que o fazia interessar-se pelos alunos, pedindo-lhes que lhe contassem seus sonhos. Uma série de informações que, às vezes, ele lia do avesso ou punha de cabeça para baixo. Era como se conhecesse a afirmação de Aby Warburg de que “Deus está no particular”, como se estivesse demonstrando aquela sensibilidade para os pequenos discernimentos de que falava Winckelmann. Quando fazia crítica literária ou de arte, e era um crítico excelente, percebia com facilidade os cacoetes do autor, as obsessões, os lapsos, o afastamento ou aproximação excessiva dos modelos de que ele partia.

Tomemos dois exemplos do seu estudo clássico de nosso barroco e da pergunta que todo mundo faz, “por que o nosso barroco é tão mais modesto do que o europeu?”. A essas aulas eu me lembro de ter assistido. Dizia ele que não só porque a Igreja brasileira é diferente da Igreja da Europa e que pertença ao povoado ou a uma região muito pobre. As razões econômicas não são suficientes para explicar uma série de diferenças que vão ocorrer na Igreja brasileira, por exemplo, a simplificação do risco das fachadas e a redução dos ornatos na parte interna do templo. Entre os vários motivos que alinhava, em primeiro lugar, ele apontava a falta de um período protestante contra o qual a Igreja Católica tivesse que reafirmar seu poderio.

Então, as marcas do poderio, ou pelo menos uma das principais, eram a riqueza interna e externa.

Em seguida, porque no Brasil a sociedade leiga não estava tão ligada ao clero, porque a Igreja estava muito ligada à catequese e tomava o partido dos índios contra os colonos, então não era preciso defender as igrejas. E porque o traçado das igrejas era um traçado vindo de uma época em que, na Europa, elas eram muito ricas (…) e esses traçados dependem em grande parte do arquiteto e de seu nível intelectual, e nós não tínhamos aqui especialistas desse tipo.

Em último lugar, entre as principais razões que Roger Bastide dava, porque a sociedade colonial brasileira era patriarcal e não aristocrática e, portanto, era muito diferente da sociedade dos italianos e dos soberanos alemães, o que podia refletir a simplicidade do meio social como interpretava a carência de cultura arquitetônica.

Entre essas coisas, no entanto, a mais bonita que eu vi no curso foi a análise do Aleijadinho, que hoje é tida como a clássica, mas na época foi muito inovadora. Ao analisar com atenção os vários elementos fornecidos pela biografia de Antônio Francisco Lisboa, Roger Bastide conclui que todos eles derivam da mesma fonte, isto é, Maria Lopes, e compõem a volta do grande arquiteto, do grande santeiro também, com um halo de lenda. O mesmo halo que costuma flutuar à volta do santo ou do artista.

Vendo rapidamente essa lenda, constatamos que o artista não é um homem como os outros, ele é apresentado, por um lado, como um semideus e, do outro, como fora da lei; ele fica marcado, portanto, por uma certa maldição. Muitas vezes, ele é marcado como um louco, assassino, um miserável, como dizia Bastide, haja vista Hércules e Teseu. Ou também certos poemas de Baudelaire ou Rimbaud, onde há uma imagem do grande artista, do gênio que é anterior à própria existência do gênio e que vai, inclusive, formar o conhecimento.

Mesmo pensando em informações que parecem exatas, teria o Aleijadinho realmente sido leproso? O fato de ser lembrado ao longo do tempo com o camartelo preso ao toco do braço não pode ser uma invenção popular? O fato de ser descrito sem dentes, sem pálpebras, violento, irascível e de trabalhar escondido em sua tenda, envolto num manto negro, será verdadeiro? Será inegável? E o fato de não sair de casa, ou de sair esgueirando-se entre as pedras que os moleques atiravam? Mesmo levando em conta que pudesse ter sido leproso, dizia Bastide, é impossível aceitar que com o instrumento nos tocos dos braços ele tivesse conseguido fazer aquela obra de extraordinária perfeição técnica.

Essa a razão que levou Bastide ao problema da caligrafia. A impressão que se tem é que o Aleijadinho era muito meticuloso, de modo que não foi difícil encontrar a sua assinatura nos papéis em que reconhecia ter sido pago. Examinando essas assinaturas, conclui-se que, se lembrarmos, sobretudo, que ele morreu com 84 anos, e essa caligrafia é a de um homem de 65 anos, é caligrafia perfeita.

Quanto ao tema do talento, uma das fábulas que se contam é que o Aleijadinho não adquiriu o talento que ele tinha, mas que esse lhe foi dado de forma divina. É possível que ele não soubesse o latim, como se diz, ele era um homem bronco, mas é certo que ele pertencia a uma família relativamente erudita porque o pai dele tinha sido discípulo de Batista Gomes, o qual, por sua vez, fora aluno de dois dos melhores gravadores franceses da época.

Então, conferindo argumento por argumento, o professor Bastide chegava à conclusão de que aquilo que havia na representação que o povo tinha guardado de Aleijadinho era absolutamente falso e coincidia, isto sim, com a representação tradicional e universal de que o artista é sempre marcado por um destino terrível.

Não tenho muito mais coisas para lembrar, para dizer aos senhores, sobre isso. Não é uma situação em que eu me saia muito bem, mas isso mostra um método, muito mais parecido, inclusive,com o método de Conan Doyle, de ir descartando uma a uma as interpretações incorretas. Por que eu me lembrei disso? Porque pode-se dizer que Roger Bastide foi na história do barroco brasileiro um momento tão importante quanto tinha sido para a revolução do barroco a ida de Mário de Andrade a Minas Gerais em 1919.

A primeira vez em que se fala do Aleijadinho de uma maneira civilizada é nos primeiros trabalhos de Mário de Andrade sobre ele. É possível dizer que a maneira final em que nós acabamos conhecendo o papel do Aleijadinho foi com a passagem de Roger Bastide pelo Brasil. (…)

Walnice Nogueira Galvão*, professora titular de literatura na Universidade de São Paulo, fala à CULT sobre o livro A Palavra Afiada, obra que organizou e que sai no começo do segundo semestre pela editora Ouro Sobre Azul, com textos da filósofa, crítica literária, ensaísta e professora Gilda de Mello e Sousa (1919-2005).

A Sra. conviveu com dona Gilda. Como era a relação de vocês?

Convivi bastante. A relação era muito boa. Não só comigo, mas com uma porção de gente. Alunos que a procuravam, em casa, ou na faculdade, etc. Ela era uma pessoa finamente educada, muito cortês, de maneiras impecáveis, e que gostava muito de ajudar os outros, e de se envolver em reflexões junto com os outros. Comentar livros, comentar filmes, comentar problemas artísticos. Ela gostava disso.

O convite para organizar o livro veio da Ana Luiza, filha da dona Gilda. Esse convite a surpreendeu?

A ideia foi da Ana Luiza. Não surpreendeu porque a principal entrevista do livro fui eu que fiz.

Quanto tempo levou para organizar o livro?

Cinco anos.

Qual ou quais dos textos mantém maior atualidade?

Eu penso que todos. Porque na medida em que são uma reflexão finíssima, perspicaz e aguda sobre diferentes fenômenos artísticos, estéticos, etc, a atualidade é permanente.

A Sra. acredita que o estilo de dona Gilda deve ser usado como exemplo para futuros textos acadêmicos, pela fluidez e capacidade de atingir um amplo leque de leitores?



Sim. E não só os textos acadêmicos. É alto estilo. E um alto estilo deve servir de modelo para qualquer coisa. Para jornalismo também, por exemplo. Se os jornalistas forem capazes, claro.



Além dos textos que estão no livro, há outros a serem compilados?



Não. Agora fecha-se o que ainda não estava publicado.



*Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na Universidade de São Paulo e responsável pela edição crítica de Os Sertões (Editora Ática), de Euclides da Cunha. Além disso, tem 22 livros publicados, como O Império de Belo Monte (Fundação Perseu Abramo) e Guimarães Rosa (Publifolha).

Gilda de Mello e Souza (1919-2005) foi filósofa, crítica literária, ensaísta e professora. Nascida em Araraquara (SP), foi casada com o crítico Antonio Candido, com quem colaborou na produção da revista acadêmica Clima (1941 a 1944). Formou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo, onde recebeu o título de doutora em ciências sociais com a tese A Moda no Século XIX. A partir de 1969, dirigiu o departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, aposentando-se em 1973.Em 1999, recebeu o título de professora emérita, cujo discurso de agradecimento é reproduzido nesta edição. Ele fará parte do livro A Palavra Afiada, organizado por Walnice Nogueira Galvão e que sai no começo do segundo semestre pela editora Ouro sobre Azul.

Fonte: http://revistacult.uol.com.br/





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